quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Meninos feios, meninos bonitos

Estamos sentados em roda, os doze aprendizes do amor, agora para falar sobre a sombra do outro. Já somos um grupo há mais de um ano. Há mais de um ano nos reunimos com a mestra mãe e cada filho coloca nesta mandala de cura seus sentimentos mais íntimos e profundos. Há mais de um ano estamos em um processo individual de investigação sobre tudo aquilo que nos constitui. E há mais de um ano, o foco do trabalho ainda é o lado negro da alma. Doa a quem doer. Admitir que abrigamos o mal dentro de nosso espírito é uma ofensa para o nosso ego. A nossa primeira reação é desconsiderar a hipótese absurda de que não somos excelentes pessoas. Depois, a estratégia é dar uma retocada na maquiagem da personagem e negar o fato até a morte. Por fim, é se pronunciar sobre meias-verdades. Afinal, ego nenhum quer passar por burro e na maioria do tempo, ainda é ele quem senta em posição de lótus na roda. A despeito das estratégias egóicas, um trabalho de transformação está acontecedo."Quem os guia até aqui é o teu eu-superior", diz nossa mestra do amor. Também é ele quem nos inspira a ter momentos de quietude. Um pouquinho de tempo dedicado ao silêncio e à meditação é suficiente para abrir uma brecha na janela da alma, por onde se pode ver a verdade vindo à tona e, como um tsunami, derrubar o castelo de areia que o ego construiu com tanto apreço. É nesta brecha que reside a possibilidade de despertar para o viver. Desmascarar o ego e abrir espaços para o surgimento do verdadeiro ser. Até agora, a prática do trabalho se resume em falar de si e ouvir o outro. Cada um tratando de limpar a sua própria casa. Hoje, será diferente. Todos têm que dizer o que acham que é mentira no outro. A mestra explica que não vamos falar do outro, mas que vamos falar para o outro. "Uma verdade dita com o sentimento de amor pode ser a cura de uma alma doente". A intenção da atividade é ajudar e a instrução é não se justificar, ser claro com as palavras e de preferência não ter dedos para dizer aquilo que tem que ser dito. "Primeiro vamos falar sobre Ana", decide a mestra. "Logo sobre Ana?", pensei. "A Ana é tão fofa. Adoro a Ana...Vai ser difícil falar sobre a sombra dela..". Não é fácil dizer o quanto a casa do outro está suja. Tivemos alguns minutos para silenciar e voltar nossa consciência para Ana. Lembrei da Ana chegando aos encontros, dela sentando na roda, sempre ali no cantinho direito, das histórias que ela contou sobre a infância, da forma como ela fala do pai dela e como ela reage às falas dos outros. Pensei na Ana com meu coração. E no fim, não foi difícil falar sobre ela. Houve uma preocupação em escolher bem cada palavra para que ela pudesse compreender exatamente aquilo que eu gostaria de dizer para ajudá-la. Ana foi a primeira a ouvir sobre as suas sombras. Onze pessoas falaram sobre as suas inferioridades. Enquanto escutava os apontamentos, a expressão de Ana ia se intensificando. Ao fim da sessão, Ana chorou. Parecia ser o sentimento de cair em si. Depois de Ana, foi assim com todo mundo. Meninas e meninos dispostos a tirar da frente as máscaras que escondiam suas reais belezas passaram corajosamente pelo raio-X. Nenhum absurdo foi dito sobre ninguém. As mentiras que inventamos sobre nós mesmos são como fantasias baratas que vestimos no carnaval. Parece tudo tão óbvio. Chegou a minha hora de encarar a verdade. Sou eu quem estarei na boca do outro. Alguns me observam. Outros estão de olhos fechados. Prefiro fechar os olhos também. "Sei que sou vaidosa. Sei que sustento uma personagem sólida, do tipo dócil, que finge levar tudo numa boa. Sei que isso é uma mentira descarada..."- vou antecipando sobre o que posso ouvir. É Ana quem começa a dizer sobre mim. Vou recebendo de meus amigos o retrato falado do meu ego. Eles apontam vaidade, luxúria, pactos de vingança, medo, frustração e uma criança ferida que se coloca sempre diante do mim. "Eu vejo uma menina sozinha num beco escuro, apavorada, com uma lanterna bem fraquinha, tentando seduzir alguém". Foi Laura quem pintou o retrato falado da minha alma cheia de mágoa e de dor. Essas palavras não foram fáceis de engolir. Senti raiva, vergonha e tristeza. Eu já sabia. Sim, já sabia. O impressionante é perceber que os outros nos percebem com inimaginável clareza. Aos poucos, vem o entendimento: É preciso olhar para a sombra para começar a ter algum vislumbre de luz. "Vocês não são isto que vocês ouviram. Este é o teu ego e teu ego pode ser dominado pela sua divindade. Com muito trabalho, é claro". No encontro seguinte, entre mortos e feridos, estávamos todos lá. Os doze buscadores reunidos. Desta vez, compartilhando um sentimento em comum: o da libertação. Meninos feios também podem ser meninos bonitos.