sábado, 13 de março de 2010

Miríade

Desde pequena, queria cantar o morro. O canto era preto, grave e rouco. Era o gemido da menina que descia e subia carregando lata d' água na cabeça. 'Pára com isso que este gemido não dá pé, Pretinha!', dizia o velho pai. Teimosa, continuava a ronronar sua birra. Era a agonia de lavar roupa todo dia quando tutu não viria. Era comer pão com pão para não comer a própria carne. A carne mais barata que se vendia no mercado era a carne negra.

O canto do morro era a miséria rebolando na cintura fina e na carne a mais que Deus dá para as crioulas. Não era banzo nem carnaval. Era duro pra chuchu, mas dava suingue. Era um baticum de 40 toneladas num corpo magro de 40 quilos. Era o gemido inquieto e petulante da menina que vestiu um par de sandálias arrebentadas para descer o morro e mostrar seu canto à cidade. Era o sonho da menina batendo na porta da Rádio Vera Cruz. 'Oi. Eu vim para participar do programa do seu Ari Barroso'. O homem olhou-a dos pés à cabeça e perguntou: 'O que é que você faz?'. 'Eu canto o morro', a menina respondeu séria. 'O que?', desdenhou o homem. A menina soltou um gemido estrondoso. O homem arregalou os olhos e com o que lhe restou do ar roubado pelo vozeirão da menina, falou: 'Seis horas em ponto na rádio Mauá'. Quando a neguinha miúda subiu no palco do show de calouros, tropeçando nas tiras da sandália que arrastavam no chão, arrancou risos da plateia e deboches no rosto do apresentador . Era Ari Barroso que a olhava sem entender absolutamente nada. 'Mas o que você veio fazer aqui, criatura?'. 'Eu vim cantar o samba brasileiro para o mundo', respondeu destemida. 'Veio cantar o samba brasileiro? Para o mundo? Mas não seria muita ousadia?' E o público ria. 'Tem certeza de que quer fazer isso mesmo, menina? Olhe só o seu estado...'. A mocinha olhou firme para o respeitável senhor e respondeu; "O meu Estado é o Brasil, seu Ari, e no Brasil tudo o que se canta dá samba, até mesmo o que não presta'. Desconcertado, o renomado compositor teve de se recompor:'Muito bem. E qual é mesmo o seu nome?'. 'Eu sou Elza Soares e vou cantar Aquarela do Brasil'. E desta vez, sem zombarias, anunciou em rede nacional a atração que não poderia ficar mais constrangedora: 'Então vamos ouvir agora a corajosa senhorita Elza Soares!'. A menina estava com os olhos cheios d´água quando levantou a cabeça. Com o olhar para o mundo inteiro, começou a cantar. 'Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos...' Jamais se ouvira algo semelhante. O mundo fez silêncio para ouvir a voz que vinha lá do morro. Nitidamente rendido diante daquela miríade, Ari Barroso aproximou-se humildemente da menina e abraçou-a com reverência e ternura. Depois de muitos aplausos, exclamou em rede nacional: 'Está nascendo agora a mais nova estrela do Brasil. Senhoras e senhores, esta cantora é Elza Soares!'

Um comentário:

Taguinha disse...

A Giuzoquinha tá voando....... Excelente texto!!! Te "saluto" com uma miríade de aplausos.... e de pé